terça-feira, 23 de setembro de 2008

Assassinos

Este conto é o que mais se aproxima do tipo de coisa que eu gosto de escrever.
Ele não fala apenas sobre assassinos.
Fala sobre pessoas que gostam de julgar as outras do alto de seus pedestais, erguidos sobre o falso moralismo e o orgulho. E fala de como é fácil para alguém fazer tudo isso ruir.
Podemos criticar, julgar e apontar o dedo para quem quisermos, mas ninguém será mais implacável que nossa própria consciência.


Assassinos


A noite estava silenciosa.
Ou talvez apenas aquela ala do presídio estivesse silenciosa, a despeito de todos os sons que tentavam penetrar através de seus muros, vindos de fora.
Era silenciosa e fria como um túmulo, e talvez de fato fosse para algumas pessoas que por lá passavam e jamais saiam.
Aquela ala quase deserta do presídio guardava os criminosos mais perigosos, aqueles que não tinham condição nenhuma de voltar a viver em sociedade, e lá, aguardavam a única solução encontrada para pessoas como eles: a execução.
Era uma quinta-feira e na manhã do dia seguinte, o único prisioneiro que residia naquela ala naquele momento, seria executado.
Seu nome era Carlos e havia estuprado e matado várias mulheres, até cair em uma armadilha da policia e ser preso ao tentar estuprar uma policial disfarçada.
Sentado em seu catre, estava silencioso e estranhamente calmo. Sabia que vivia as últimas horas de vida e mesmo assim, estava tranqüilo, como se estivesse sentado em um banco qualquer de uma praça qualquer apena esperando as horas passarem.
- Como você consegue ficar tão calmo sabendo que amanhã irei te matar?
Do lado de fora, sentado em uma pequena cadeira havia um homem comum do tipo que você olha e logo em seguida esquece. Era pequeno, na casa dos seus 60 anos e seu tipo físico não era o tipo que costumava impressionar ninguém. Tinha uma pequena barriga que já escapava das calças e um rosto doce e amoroso, do tipo vovô. O óculos que usava contribuía ainda mais para a errônea impressão de que aquele pequeno senhor era um simples e bondoso vovô. Mas por baixo daquelas lentes, seu olhar era
intimidador. Seus olhos tinham uma frieza sem igual, eram olhos de um predador, olhos que já tinham visto a morte de perto muitas vezes.
Ele tinha o costume de passar a última noite com sua futura vítima, não para confortá-la ou amenizar o sofrimento que viria, mas para mostrar que, executar um condenado fazia tanta diferença para ele quanto dar uma chinelada em uma barata. Ele achava que aquilo era uma forma de fazer com que eles começassem a pagar pelos seus crimes até o derradeiro momento em que ele puxaria a alavanca que transportaria quem quer que estivesse sentado na cadeira elétrica, diretamente da terra para o inferno.
Seu nome era João Pedro, mas para os funcionários do presídio, ele era O Algoz e até aquele dia, ele nunca tinha tido dúvidas sobre o trabalho que realizava.
- E então, não quer aproveitar suas últimas horas e bater um papo?
- Ok, se você sente tanta necessidade de conversar, vamos lá. Do que quer falar? – disse Carlos calmamente, ainda sentado em seu catre.
Era uma cena estranha, dois matadores frente a frente apenas separados por uma grade. Um que matava pelo desejo de fazê-lo e outro que matava por ser seu trabalho. Um que matava por diversão e outro que matava por obrigação. Dois homens com histórias diferentes, com motivações diferentes, mas ao mesmo tempo, com tantas coisas em comum.
- Por que você matou todas essas mulheres? – O Algoz continuava falando entre uma mordida e outra em seu sanduíche.
- Uma pergunta engraçada vinda de você. Eu matava porque eu queria, porque gostava de sentir que a vida delas dependia da minha vontade e eu podia tirá-las quando eu bem quisesse. Assim como você.
Olhando por cima de seus óculos, O Algoz encarou o prisioneiro por alguns instantes. Limpou a boca com um lenço e calmamente respondeu.
- Eu não sou como você. Eu não mato as pessoas por prazer, ou porque quero me sentir algum tipo de deus. Mato porque é meu trabalho e alguém precisa livrar as ruas de pessoas como você.
- E você gosta do seu trabalho?
- Não posso dizer que seja dos piores.
- Então você gosta do que faz, e isso te torna exatamente como eu. A única diferença entre nós é que eu reconheço o fato de gostar disso. Sou mais corajoso.
- Mas no momento, coragem não vai mudar nada. Amanhã tudo estará acabado para você. Mas, de todos os que já executei você, é o único que não está se cagando de medo e me implorando para soltá-lo, dizendo que se arrepende de tudo o que fez e prometendo jamais fazer novamente.
- Desculpe se te desapontei, mas eu sempre soube que um dia isso aconteceria. Sou um caçador, mas todo caçador, tem seu dia de caça e eu estou vivendo o meu agora. E agora sou eu quem tem uma pergunta para você. Posso?
- Claro que pode, afinal isso é uma conversa não é?
- Pois bem, quantas pessoas você já matou?
- Acho que quase uma centena de condenados, talvez um pouco mais ou um pouco menos.
- E eu que matei apenas treze já sou chamado de assassino. Essa sim é uma marca que vale o título de assassino. O velho senhor com sua face sempre calma engoliu em seco ao ouvir isso. Nunca nenhum condenado havia falado assim com ele, e muito menos tocado num ponto que ele sabia que existia, mas tentava manter escondido dentro de si na esperança de que ao se esquecer dele, ele desapareceria. Ou pelo menos não incomodaria.
Ele gostava do que fazia e essa era a verdade. Sentia-se bem ao executar um condenado. Ele dizia que se sentia orgulhoso de prestar um serviço a sociedade, de ser um instrumento da justiça e que isso era a motivação para executar seu trabalho, mas no fundo ele sabia que isso era apenas conversa fiada. Ele também sentia prazer no que fazia.
- O que houve? Te deixei sem palavras?
O condenado esboçava um leve sorriso ao perceber que por mais que o velho tentasse disfarçar, ele tinha tocado em algo, e isso tinha começado uma reação em cadeia.
- Até parece que um maldito assassino conseguiria me deixar sem palavras. Apenas estou pensando em como é ridícula essa sua tentativa patética de me igualar a você.
- Não senhor, não mesmo. Sem chances de eu me igualar a você. Você tem uma larga vantagem sobre mim. De quantos mesmo? Uma centena mais ou menos?
E finalmente soltou uma gargalhada gostosa, alegre, do tipo que se ouve de alguém que acaba de ouvir uma piada muito engraçada e não de alguém que está para ser morto.
- Você é completamente louco. – disse o velho senhor, deixando uma ponta de irritação escapar em sua voz e com isso quebrar toda aquela máscara de indiferença que vinha exibindo.
- Não, eu não. Você sim é louco por viver duas vidas. Uma para seus patrões, que te mantém aqui porque sabem que você é um assassino de sangue frio, o tipo exato para fazer esse tipo de trabalho e outra para si próprio, na qual você se ilude achando que é apenas um funcionário obedecendo ordens. Eis outra semelhança entre nós: fizemos o que nos mandavam fazer.
- Agora vai querer me dizer que o demônio falava com você ordenando que cometesse esses assassinatos? Que o diabo possuia seu corpo e você não tinha controle nenhum sobre o que fazia?
- Não, longe disso. Eu matava porque minha vontade de fazer isso me mandava fazer. E no seu caso é mais patético ainda, pois você precisa que outra pessoa te mande fazer algo que bem lá no fundo sente vontade de fazer. Eu faço porque quero e não preciso de uma “forcinha” de alguém. Acho que no fundo sou mais corajoso que você.
A irritação do velho carrasco estava cada vez mais aparente, e por mais que ele quisesse responder a altura daquele estranho homem que falava coisas que nunca haviam tido coragem de dizer a ele, simplesmente não conseguia achar palavras para fazer isso.
- Você não sabe o que está dizendo, não temos nada de parecido, somos....
- Completamente diferentes? – interrompeu o condenado - Mesmo eu tendo sentido prazer ao fazer tudo o que fiz, ainda assim, à noite eu sentia remorso, pois elas eram jovens e as privei de várias coisas ao matá-las, mas isso não importa mais, pois amanhã, não terei mais problemas de consciência para me preocupar. Mas e você?
Pela primeira vez sentindo medo do que poderia ouvir de alguém que dali há algumas horas ele iria matar, respirou fundo e perguntou.
- O que tem eu?
- Como você consegue chegar em casa, olhar para sua mulher e com tanto sangue nas mãos, por a cabeça no travesseiro e dormir tranquilamente? Nunca sonhou sonhos em que suas vítimas vinham se vingar?
Como ele podia saber disso? Há algum tempo ele já vinha tendo poucas horas de sono tranqüilo. Dormia e sonhava com os rostos suplicantes das pessoas que tinha matado. Elas não reclamavam por ter sido ele a matá-las, mas sim por ele ter sentido satisfação ao fazê-lo. Provavelmente um psicanalista diria que isso era a forma que a sua consciência arrumou para perturbá-lo e mostrar que não estava tudo bem ao fazer o que vinha fazendo há anos.
- Pelo visto também não consegue dormir não é? Realmente somos muito parecidos mesmo.
- Você não sabe do que fala. Eu não sou um assassino como você. Eu sou um instrumento de justiça, alguém que vive para impedir que monstros como você, façam as pessoas sofrerem. – em pé, segurando as barras da grade que prendiam Carlos, o velho carrasco gritava. – Já chega desse papo sem sentido. Amanhã tudo estará terminado e você pagará pelos crimes que cometeu e serei eu, a fazê-lo pagar.
Virou-se e começou a juntar suas poucas coisas que haviam sido colocadas no chão, ao lado da cadeira onde tantas vezes havia ficado sentado diante de assassinos de todos os tipos, assassinos que nunca tinham conseguido perturbá-lo dessa maneira.
- Já vai? Espero não ter tirado seu sono com essa nossa pequena conversa. Durma bem, meu irmão, ou tente pelo menos...
- Amanhã quero ver você manter esse sorriso em seus lábios quando eu abaixar a alavanca que vai mandar você direto para o inferno, sem nenhuma parada no caminho.
Virou-se e despediu-se do condenado, mais por hábito do que por desejo de ser simpático ou manter a aparência formal.
- Não, não nos veremos amanhã. – disse Carlos, mais para ele mesmo ouvir do que para o velho carrasco que saia pisando duro com passos apressados. Deitou-se em seu catre e alegre, começou a assoviar uma canção qualquer.
Saindo do presídio, João Pedro estava desorientado. Como a conversa poderia ter tomado aquele rumo? Normalmente era ele quem conduzia o papo até levar os condenados a se confrontarem com seus fantasmas e se divertia ao ver o desespero deles diante das coisas que encontravam dentro de si mesmos, mas algo havia saído errado ali. Era ele quem havia sido posto a prova, era ele quem tinha encontrado seus demônios interiores, e o que viu era muito assustador.
Chegou em sua casa e foi direto ao banheiro. Precisava de um banho urgentemente. Tinha que tirar o cheiro do presídio do seu corpo e com isso, talvez tirar aquela conversa da cabeça. Entrou rápido, sem sequer dar um beijo de boa noite em sua esposa que estava deitada em sua cama lendo. Estranhando perguntou a ele se estava tudo bem.
- Sim, querida, está tudo bem. Só vou tomar um banho, pode voltar para seu livro.
Tirou a roupa e ligou o chuveiro, mas não entrou. Olhava para o espelho e não reconhecia seu rosto. Ali não estava mais um servidor da justiça. O que ele via olhando de volta para ele do espelho, era um assassino frio que já havia matado centenas de pessoas e que havia sentido prazer ao fazer isso. Era um rosto que ele via pela primeira vez, mas que já conhecia há muitos anos.
Nos olhos desse assassino ele via os rostos contorcidos de dor e deformados pela eletricidade que os atravessava durante a execução. A agonia deles o invadiu de uma única vez e o desespero cresceu dentro dele como um punhal frio que o rasgava de dentro para fora.
Doía.
Doía muito na verdade.
Ele tinha que fazer a dor parar e viu como fazer isso num pequeno brilho prateado sobre a pia. Sua boa e velha navalha, que ele sempre usou para fazer a barba antes de cada execução. Para ele, o momento da execução era algo solene e por isso ele gostava de estar sempre muito bem arrumado. Penteava seu cabelo branco como uma lápide de mármore e usava sempre um terno preto, e sempre, sem falta, fazia a barba. Aprendeu cedo que uma barba mal feita era um erro imperdoável. Tinha que estar sempre apresentável. Na verdade, ele gostava de parecer feliz e bem, para que suas vítimas o vissem e o invejassem.
A dor continuava a rasgá-lo por dentro. Parecia que o maldito condenado tinha feito algo rachar dentro dele e agora essa rachadura aumentava, inundando-o com sentimentos e sensações que ele passou a vida toda negando sentir.
Pegou a navalha e sentou no piso frio do banheiro.
Ele era um executor, um servo da justiça, mas havia falhado em seu trabalho. Havia deixado de matar o maior assassino que conhecia.
Isso era imperdoável.
Olhou para a lâmina e nela viu mais uma vez os olhos de um assassino.
E então soube que, por uma última vez, deveria fazer o seu trabalho.
Com dois breves movimentos, abriu seus pulsos com a navalha, e enquanto sentia o sangue quente escorrer de seus pulsos, sentia a dor indo embora junto com ele. Agora a justiça estava servida e ele poderia descansar novamente sabendo que realizou seu trabalho de forma impecável como sempre. Agora sua consciência estaria em paz e os fantasmas de todos os assassinos que havia matado e que, há incontáveis noites o atormentavam, se calariam, pois o maior de todos eles agora também havia sido executado.
Mas antes de se entregar ao torpor que ia tomando conta de seu corpo, deixou um pequeno recado escrito em sangue para sua esposa e finalmente, seu último condenado morreu. Um condenado que não foi julgado por tribunal nenhum, mas que foi condenado pela maior força de acusação que existe. Sua própria consciência.
Na manhã seguinte, Carlos foi levado à sala de execução e já sentado na cadeia elétrica, ouvia o juiz proferir a sentença e citar os crimes que o condenaram.
O momento havia chegado e lá, ele encontraria seu fim.
- Alguma coisa a dizer como suas últimas palavras? – perguntou o juiz.
- Sim, tenho. Quero dizer que me não me arrependo do que fiz. Não pedi para ser o que sou. Eu nasci para fazer esse tipo de coisa. E só queria dizer que não matei apenas treze garotas.
- O que você quer dizer com isso? – perguntou o juiz intrigado.
Olhando para o jovem que chegou e se posicionou junto ao painel que ligava a eletricidade da cadeira, sorriu e disse: - Matei treze garotas e um assassino.
E riu, até o momento em que a eletricidade fez seu coração parar de bater, cessando as risadas.
E nessa mesma manhã, em uma casa distante do presídio, uma mulher chorava desesperada por ter encontrado seu marido morto, com os pulsos cortados, no banheiro de sua casa.
E na parede, uma única mensagem escrita a sangue.
“Todo caçador, tem seu dia de caça. E hoje foi o meu..”

Um presente!

Uma certa vez, uma amiga muito querida me pediu um texto de aniversário.
E ela me disse algumas coisas sobre ela para que eu tivesse de onde começar. Duas coisas me marcaram sei lá bem porque: A primeira era que ela adorava borboletas e a segunda era que a idéia de crescer e se tornar uma adulta a assustava. Acho que isso foi o que mais mexeu comigo pois, eu também não sou muito fã dessa idéia.
De qualquer forma escrevi o presente dela e acho que sem querer, acabei ganhando um também.
Ao me pedir para fazer um conto para ela, ela me deu a inspiração para fazer um dos mais bonitos (sem falsa modéstia) dos que já escrevi.
Então, acho que te devo um obrigado Juzinha.


A menina que se tornou uma borboleta


Há algum tempo atrás, em uma cidade como outras tantas cidades que existem por ai, havia uma garota que não queria crescer.
E quem pode culpá-la por isso? Afinal, não tem tantas coisas boas no mundo dos adultos quanto há no mundo das crianças não é mesmo? Mas como crescer é algo que não podemos evitar, ela tinha que se tornar mais uma adulta no meio de tantos outros adultos chatos, e por causa disso, ela estava triste.
Ia completar 12 anos, uma idade em que ainda não se é verdadeiramente um adulto e tão pouco se continua a ser criança. “Você vai se tornar uma mocinha linda” sua mãe dizia sem notar a cara que ela fazia cada vez que tinha que ouvir isso. Sabe aquela cara de quem experimentou limão com sal pela primeira vez e definitivamente não gostou? Sabe? Então, era exatamente essa cara que ela fazia e, mesmo com a festa que sua mãe estava preparando para aquela noite, esse gosto não melhorava.
Debruçada na janela de seu quarto, que dava para um imenso bosque onde tantas vezes ela se divertiu procurando fadas e duendes, ela pensava nos passeios que não poderia mais fazer ou nas aventuras das quais não poderia mais participar, afinal, como sua mãe sempre fazia questão de dizer - Isso é coisa de criança.
Então, já que ela estava triste, só havia uma coisa a fazer. Uma coisa que tantas vezes ela já fizera quando estava triste e sempre tinha ajudado a resolver esse problema.
Vestiu apressada sua roupa de passear no campo (não é engraçado como os adultos adoram criar roupas para todas as ocasiões, para missa, para festas, para passear no campo e por ai vai?) e saiu silenciosa sem avisar ninguém. Mas isso também não importava já que todos conheciam esse costume que ela tinha de sair para passear no bosque que ficava logo além dos portões de sua casa.
O tempo estava perfeito, o céu azul parecia uma piscina dentro da qual, pouquíssimas nuvens que mais pareciam pequenos bichos feitos de algodão, nadavam de um lado para o outro ao sabor de uma brisa morna que soprava. Ela caminhou até a entrada do bosque e se deteve por um instante. Sentia-se estranha, como se ela mesmo fosse uma estranha naquele bosque tão conhecido e ali não fosse mais bem vinda. Será que crescer era assim? Se sentir indesejada em todos os lugares onde viveu sua infância? Isso não importava, se aquela seria a última vez que ela iria poder ir até lá, sendo bem vinda ou não, ela iria se despedir do velho bosque e de suas amigas.
Caminhou pela velha trilha picada entre as árvores e se dirigiu até a clareira onde sabia que suas amigas logo iriam aparecer. A cada trecho para o qual dirigia o olhar, uma lembrança surgia junto à imagem que via. Olhou para um velho carvalho e viu-se nessa árvore junto com uma amiga, deixando comida em um buraco no tronco para alimentar os duendes que ela tinha certeza que viviam por ali (mesmo sem nunca ter visto um deles). Mais adiante em uma velha árvore com os galhos já secos e retorcidos lembrou-se da vez em que caiu de um desses galhos e machucou os joelhos, ao tentar subir para colocar um filhote de passarinho de volta no ninho. Quantas lembranças alegres, lembranças que iriam marcar para sempre sua memória e, em alguns casos, os joelhos e cotovelos também.
Finalmente chegou a fronteira do bosque com a clareira que havia lá bem no meio dele. Ela sempre se referiu a aquela mudança de terreno como fronteira, porque tinha ouvido essa palavra em um programa de televisão e havia achado essa palavra muito bonita. Era por volta de umas quatro e meia e o Sol já ia começando a fazer a sua curva rumo ao lugar onde ele passaria a noite. O bosque terminava em um pequeno barranco que descia por uns dois metros até a clareira. De cima do barranco ela olhava para aquele pedaço de terra praticamente nu, se comparado ao resto do bosque, e já não se sentia mais uma estranha. Era como se aquele pequeno pedaço descampado do bosque fosse mágico, e sua mágica, capaz de espantar a tristeza que sentia.
Agora é um momento propício para uma pausa em nossa história, apenas para descrever esse pequeno pedaço de terra. Sabe aquelas paisagens que só vemos em papéis de parede de computadores ou em imagens de quebra-cabeças? Isso não era nada comparado a aquele lugar. A clareira ficava numa parte mais rebaixada do bosque, como se tivesse sido cavada e depois cercada por árvores de todos os tipos. Bem no meio dessa clareira havia um pequeno lago de águas transparentes, onde era possível ver os peixes nadando calmamente, alheios ao mundo que os cercava. A grama era baixa e de um verde que tinta nenhuma conseguiria reproduzir. Na margem do lago havia um grande ipê-roxo que estava sempre florido, como se para ele as estações não significassem nada. Logo abaixo dele havia uma pedra lisa em que ela costumava sentar e que servia perfeitamente como um banco. Ela até achava que ela havia sido colocada ali intencionalmente, para que algum viajante que por ali passasse, pudesse se sentar e admirar aquele lugar tranqüilamente, protegido pela sombra do sempre vigilante ipê-roxo. Agora talvez vocês perguntem o que tem de tão bonito ou especial em um lugar aparentemente tão simples como esse, onde sequer tem uma cachoeira ou pelo menos uma cascatinha. Um lugar comum e simples certo? Certíssimo, caros leitores, um lugar comum e simples, mas de uma simplicidade que apenas Deus conseguiria imprimir a aquele local. O tipo de lugar que transpira paz através de cada folha, através de cada ser que ali habita. Aliás, esse negócio de que para ser bonito tem que ser todo cheio de coisas e detalhes, provavelmente foi inventado por algum adulto.
Voltando a nossa menina, ali estava ela, admirando aquele pequeno pedaço do paraíso que tantas vezes visitou, mas que sempre parecia novo a cada nova visita. Uma amiga sua havia lhe dito certa vez que o lugar era mágico por que os duendes do bosque vivam ali e sua mágica, tornava aquele lugar mágico. E ela acreditou mais uma vez, mesmo sem nunca ter visto um duende com seus próprios olhos. Mas para uma criança, vale muito mais acreditar com o coração, do que ver com os próprios olhos.
Desceu pelo barranco e foi caminhando em direção a pedra que ficava embaixo do ipê-roxo. Como ela gostava de se sentar ali, a sombra da velha árvore, sabendo que ali estava segura, sabendo que ali, o velho ipê olhava por ela.
Olhou em seu relógio e viu que eram quase cinco horas da tarde, portanto suas amigas iriam aparecer a qualquer instante.
Pelo menos deveriam.
Em todos os dias em que havia ido lá, elas nunca haviam se atrasado, mas hoje elas ainda não tinham aparecido.
Será que até elas já a haviam abandonado? Não eram mais suas amigas?
- Com licença menina. Posso me sentar aqui também? Cansei para chegar até aqui. O caminho continua o mesmo, mas as pernas já estão velhas e cansadas.
Assustada, a menina caiu da pedra e sentada na grama, procurava quem havia dado aquele baita susto nela.
Em pé, apoiado no tronco do ipê e enxugando o suor da testa com um lenço, havia um senhor baixinho e com uma longa barba branca que chegava até sua barriga. Ele era uma figura estranhamente engraçada com sua longa barba presa no cinto, uma careca tão lisa que ela teve certeza que seria capaz de refletir a luz do Sol se o ipê não estivesse fazendo sombra sobre ela. Usava uma calça e blusa verdes de um tom quase semelhante ao das gramas que formavam o tapete que cobria aquela clareira.
Olhando para ele, ao invés de sentir medo ela sentiu uma enorme vontade de rir, e teve que se esforçar para não começar a fazer isso na cara dele.
- E então menina, posso me sentar?
- Acho que sim, acho que tem lugar para mais um ai.
Subindo na pedra, ele se ajeitou em uma pequena reentrância que parecia ter sido feita sob medida para ele, e de lá ficou olhando para o meio do campo.
- Fazia um bocado de tempo desde a última vez que vim até aqui, mas hoje, me deu saudade de umas velhas amigas que costumava encontrar por aqui. Eu vinha sempre quando era criança, mas depois que a gente cresce, fica meio difícil de se arrumar tempo para as coisas que gostávamos de fazer quando criança, mas isso não acontece comigo. Não mesmo mocinha. Sempre reservo um tempo para elas.
- Nem me fale em crescer, vim aqui me despedir.
A tristeza que a menina sentiu ao dizer isso foi tanta que seus olhos marejaram e ela teve que fazer força para não deixar nenhuma lágrima escorrer.
- Não diga isso minha jovem. Sabe, uma vez eu vim até aqui achando que tinha que me despedir, mas eu estava enganado.
- Como assim? – perguntou a menina olhando novamente para o velho com a mesma curiosidade de uma criança que acaba de ganhar um grande presente e não sabe o que se esconde por baixo do embrulho.
- Bom, quando eu estava para completar doze anos de idade, meus pais viviam dizendo que eu ia me tornar um homenzinho e que a partir dali, eu teria que parar com certas coisas que eram coisas que apenas as crianças faziam. Fiquei triste e me recusei a aceitar isso, não queria crescer de jeito nenhum.
- Eu sei muito bem como é isso. Mas e daí o que aconteceu?
- Bom, vim até este mesmo lugar e me sentei aqui, pensando no que eu podia fazer para não crescer. Foi então que eu as vi pela primeira vez.
- Você também gosta delas?
Mesmo sem o estranho senhor ter dito quem eram suas amigas, ela tinha certeza que ambos falavam da mesma coisa. Ambos falavam das inúmeras borboletas que habitavam o bosque e que no final do dia saiam em bandos, cobrindo os céus enquanto rumavam para onde o vento as carregava.
- Se gosto? É claro que sim, afinal não vim até aqui, mesmo com minhas velhas pernas resmungando contra o trabalho que dei a elas, apenas para vê-las?
Ela sentiu sua face corar, afinal fora de fato uma pergunta meio desnecessária.
- Bem, continuando – ele deu uma limpada na garganta e fez uma pausa como se quisesse lembrar onde havia parado e então continuou – eu estava sentado bem ai onde você está e então as vi saindo do bosque, centenas, milhares delas voando das árvores em direção aos céus e desejei ser como elas, sempre jovens e bonitas, mas foi ai que descobri que para as borboletas se tornarem borboletas, elas precisam crescer também.
- Como assim? Elas também precisam se tornar... adultas? – Ela sussurrou a palavra “adulta”, quase como se fosse algo proibido de se dizer.
- Sim minha cara, exatamente isso. Acontece que quando eu estava sentado aqui, notei que havia algo pendurado no galho desse velho ipê. Olhei mais de perto e vi que era um pequeno casulo que ia se esticando, inchando e abrindo, como se algo dentro dele quisesse muito sair de lá de dentro. E de fato queria. Eu sabia que as lagartas faziam casulos como aqueles, mas para mim elas faziam seu casulo e lá permaneciam para sempre. Mas foi então que o casulo se abriu e vi duas grandes e coloridas asas saírem lá de dentro. Daquele casulo feio e escuro, saiu a mais linda borboleta que eu já havia visto, e foi então que eu entendi.
- Entendeu o que? – A curiosidade da menina era tanta que parecia querer saltar de seus olhos e agarrar o pequeno velho e fazer com que ele contasse tudo, sem esconder um detalhezinho sequer.
- Entendi que as lagartas precisam crescer para se tornarem borboletas. Que chega um tempo em que elas devem crescer, se transformar e deixar algumas coisas para trás, para já adultas e com suas asas, ganharem os céus. E então eu entendi que eu era a mesma coisa.
A menina olhava para ele admirada, mas ainda não entendia exatamente o que ele queria dizer e ele pode notar isso em seu olhar.
- O que quero dizer garota é que quando somos crianças, somos como as lagartas. Pequenos, frágeis e desajeitados. Sonhamos com o céu, mas gostamos de ficar no chão que é o lugar que conhecemos e onde nos sentimos seguros, mas então chega o tempo de se tornar adulto e ai finalmente ganhamos asas para voarmos para lugares que antes só nossos sonhos alcançavam e nos assustamos com a distância que o nosso velho e conhecido chão está de nós e com medo das novas coisas que vemos, somos incapazes de ver que elas também são bonitas e interessantes. Mas o que realmente importa, é que mesmo tendo crescido, ganhado asas e se tornado mais bonita, a borboleta ainda carrega dentro de si a pequena e desajeitada lagarta. Ela cresceu, mudou, mas por dentro continuou sendo a mesma de sempre.
Agora ela começava a entender o que ele queria dizer e um pequeno sorriso começou a despontar em seu rosto.
- Isso mesmo menina, mesmo que tenhamos que crescer, nos tornarmos adulto e abrirmos mão de algumas coisas, sempre podemos carregar dentro de nós, a criança que fomos um dia. E quando entendi isso, percebi que crescer não é ruim. O ruim mesmo é se esquecer da criança que já fomos um dia. E se nunca nos esquecermos dela, ainda poderemos encontrar alegria nas novas coisas que irão surgir em nossa nova vida.
Ele estava certo. Ela sempre admirou as borboletas e às vezes desejava ser como elas, livre para voar para onde quisesse, mas nunca notou que antes de ganhar suas asas, as pequenas lagartas tinham que crescer e também abrir mão de muitas coisas, para então ganhar várias outras. E mesmo que agora elas tivessem asas para ganhar os céus, elas sempre podiam se lembrar da lagarta que foram um dia e voltar aos chãos. Sempre que quisessem.
Agora ela não se sentia mais triste, pelo contrário, estava até alegre. De repente, todo o medo que sentia de se tornar uma “mocinha” havia passado e imagens dela conhecendo novos lugares que nunca antes poderia ter ido começaram a pipocar em sua mente.
- Senhor, agradeço muito por ter me contado essa história, mas infelizmente o dia está acabando e preciso ir embora. Minha mãe está preparando uma festa de aniversário para mim hoje e não posso me atrasar. Só fico triste por não poder ter visto elas hoje. Acho que não queriam me ver e acabei atrapalhando o senhor também.
- É mesmo? Que coisa, mas então o que elas estão fazendo aqui?
Virando-se em direção as árvores a menina finalmente as viu. Eram centenas senão milhares de borboletas de todas as cores e tamanho. Vinham saindo de dentro do bosque e seguiam pelos caminhos invisíveis que o vento traçava pelo ar. Era a coisa mais linda que ela já havia visto e não importava quantas vezes visse, sempre seria como a primeira vez.
- Agora que já as viu, vá depressa ou sua mãe irá ficar preocupada.
- O senhor está certo. Muito obrigado por tudo senhor..?
- Bogan, meus amigos me chamam de Bogan.
- Então até mais senhor Bogan. Obrigado.
E se virou em direção ao bosque
- Eu que agradeço Juliana, pela companhia e pela comida que sempre me deu.
Ao ouvir isso ela não se deu conta de imediato, que aquele estranho senhor sabia seu nome mesmo sem ela ter dito a ele como se chamava. Foi como se seu cérebro não tivesse entendido o que seus ouvidos ouviam. Ela tinha certeza que não havia dito a ele seu nome e muito menos, dado comida a ele. O mais próximo de dar comida a alguém naquele bosque foram ás vezes em que ela e sua amiga deixavam comida para os duendes...
Duendes? Não era possível, não podia ser possível. Peraí, porque não era possível? Porque não podia ser possível? Tomada por uma alegria enorme que se misturava com uma ansiedade que parecia ocupar todo o seu peito, ela se virou, mas tudo que viu foi a pedra, protegida pela sombra do velho ipê-roxo.
Rindo e se sentindo mais feliz do que jamais se sentiu em qualquer dia alegre do qual ela pudesse se recordar, ela retomou seu caminho pelo bosque até sua casa. Já estava escuro quando ela chegou e sua mãe a esperava na porta.
- Por onde você andou Juliana?
- Estava no bosque mamãe, vendo minhas amigas e um velho amigo.
- Velho amigo?- perguntou sua mãe erguendo uma sombrancelha
- Sim mamãe, um velho amigo – e começou a rir
- Tudo bem mocinha, vamos entrar e tomar banho, pois você tem uma festa de aniversário hoje.
Ao entrar em casa, notou em um canto escuro do batente da porta um pequeno casulo e se deteve por um momento.
- Vamos Juliana, entre e vá tomar seu banho, afinal hoje você se tornará uma linda mocinha.
Olhando para o pequeno casulo com um sorriso nos lábios, ela disse “é verdade, hoje eu me torno uma mocinha”.
- E você está pronta para se tornar uma mocinha?
Ainda sem se virar ela disse – Não mamãe, estou pronta, mas não para me tornar uma mocinha.
- A não? Então está pronta para se tornar o que, se posso saber?
E olhando nos olhos da mãe disse - Estou pronta para me tornar uma borboleta – e gargalhando subiu as escadas rumo ao seu quarto, deixando sua mãe parada na porta sem entender nada.
Naquela noite, a menina que morava naquela casa comemorou seu décimo segundo aniversário com seus muitos amigos e já não se sentia triste por não ser mais uma criança. Brincou, riu e não pensou mais no que essa nova fase iria tirar ou trazer. Apenas se divertiu. Depois de todos irem embora, acompanhou até o portão de sua casa, a última convidada de sua festa, uma velha amiga que há algum tempo atrás, havia lhe dito que os duendes que viviam naquele bosque gostavam de ganhar comida.
E naquela mesma noite, sentado em uma árvore próxima ao portão daquela mesma casa, um velho baixinho, com sua enorme barba branca presa ao cinto, e com a careca tão lisa que refletia o brilho da lua, se divertia comendo um pedaço de bolo que uma menina que tinha se transformado naquela mesma noite, em uma linda borboleta, havia lhe deixado.

Mais uma vez digo: Quem disse que de algo ruim não pode nascer alguma coisa boa?

Ok, é patético o que vou dizer, mas serei sincero.
Pensem em minha situação: Quase 30 anos, morando sozinho, em um cidade que não é a minha e me é estranha em todos os aspectos possíveis de se pensar, solteiro e numa semana péssima no trabalho. Além de tudo isso, chega o dia dos namorados e você está sozinho, a pé e sem nenhum dinheiro para sair.
Estava a ponto de explodir e de fato, explodi. Mas não da forma tradicional sabe? Ficando mau-humorado (não muito pelo menos) e brigando com Deus e o mundo. Consegui explodir de forma mais útil eu acho.
Esse texto vem de uma idéia que tive há tempos quando ouvi alguém dizer que hoje em dia, o amor é apenas algo que pode ser comprado como um carro novo ou algo assim. Infelizmente em partes sou obrigado a concordar com isso pelo tanto de pessoas que vendem seus corações por qualquer coisa que lhes agrade os sentidos.
Então, esse texto vai para as pessoas que assim como eu, ainda acreditam que o Amor é algo que não tem preço.


O valor do amor

Mais um doze de junho havia chegado.
O dia dos namorados. Um dia em que por muito tempo o amor era celebrado e lembrado pelos vários corações apaixonados. Um dia onde ele era soberano, mas que agora, perdia cada vez mais espaço nos corações das pessoas, trocado por desejos e sentimentos mesquinhos e superficiais.
Era noite e a cidade pulsava acompanhando o ritmo de tantos corações que circulavam por suas ruas. Corações que mesmo acompanhados, eram solitários.
Acima da cidade, onde apenas os pássaros ousavam pousar, havia dois homens sentados na beirada de um prédio. Se pareciam com homens comuns, mas eram muito mais que isso e muito mais antigos do que aparentavam ser. Se alguém os visse de perto, sentiria no mesmo instante o poder que emanava daqueles dois estranhos seres. Sentira medo, curiosidade, reverencia e admiração.
Um deles tinha uma cabeleira vasta, formada por caixos de um loiro tão intenso, que pareciam feitos da própria luz do Sol. Sua pele era de um branco puro e imaculado, tão clara que refletia a luz da lua. Sua aparência era nobre e jovial, embora seus olhos mostrassem muito mais sabedoria e experiências do que seu rosto jovem podia aparentar. Lembrava os deuses gregos das lendas antigas, cujos rostos foram tantas vezes retratados em pinturas e estátuas. Vestia uma longa capa, puída e simples, que contrastava com seu jeito nobre.
Seu nome era pouco conhecido nos dias de hoje, mas antigamente, todos o conheciam e prestavam honras a ele.
Seu nome era Eros.
O outro homem era totalmente seu oposto. Tinha os cabelos bem aparados em um corte moderno e eram de um negro tão intenso que pareciam ser feito da mesma matéria que formava a escuridão. Usava um terno também de cor escura e com certeza, de alguma marca famosa e cara. Também possuía belas feições, mas eram mais como as de um animal selvagem, como por exemplo, as de uma cobra. Um olhar capaz de fascinar as pessoas, mas incapaz de esconder o desejo de atacar. Olhos que revelavam o predador que ele era. Não possuía um único nome, mas de todos os que havia recebido, o seu preferido era Greed.
Ambos olhavam as pessoas abaixo com curiosidade.
Pessoas comprando presentes, pagando jantares e gastando dinheiro de várias maneiras numa tentativa de mostrar o quanto valia o amor que diziam sentir e, vendo essa cena, o rapaz loiro se entristecia enquanto seu jovem companheiro parecia se divertir.
- Está vendo meu velho amigo? Infelizmente não há mais espaço para você nesse mundo. É meu tempo agora. – disse Greed, acendendo um cigarro e dando uma profunda tragada.
- Talvez seja verdade, talvez não. De qualquer forma não seja tão presunçoso. Você ainda é novo e, não importa a força que tenha, existem coisas mais fortes que você pelo mundo. –
Enquanto conversavam, Greed apontou um casal que discutia em um banco de uma pequena praça, ao que parece, pelo fato do jovem rapaz ter esquecido de comprar o presente de dia dos namorados para sua namorada.
Greed se divertia vendo a cena e gargalhava feliz entre uma tragada e outra.
- Vê o que digo? Não importa para ela se ele a ama ou não, e sim, se ela vai ganhar um presente ou não. Materialismo puro e simples. É disso que falo. –
Eros olhava para aquilo e não conseguia disfarçar a tristeza que sentia diante daquela demonstração de ganância e interesse puro. Como era possível que as pessoas valorizassem tanto um bem material e se esquecessem completamente do que essa data realmente significava, ou pelo menos, do que deveria significar? Como era possível que o amor pudesse ter perdido seu valor e acabar tão banalizado, tão em segundo plano? Mas o que o consolava era que mesmo assim, ele ainda não havia sumido do coração de todas as pessoas, afinal, ele ainda estava ali não estava? Estava ali, sentado lado a lado com seu rival, mas ainda estava ali.
- Pode ser que você tenha razão, pelo menos com aqueles dois como exemplo. Mas olhe para aquele outro casal logo ali na esquina. – Eros apontou para a marquise de uma loja de luxo, onde um casal de mendigos arrumava, da melhor forma, o que viria ser a cama deles naquela noite.
- O que têm eles? São apenas dois vagabundos, o que eles podem... –
- Shhhh!!! Apenas escute. – disse Eros levando o dedo à boca e interrompendo seu companheiro.
Na marquise, o casal se preparava para mais uma noite como tantas outras que já haviam passados juntos. Noites frias, sofridas, com o sono interrompido pelas reclamações de um corpo com fome e medo.
Quanto tempo fazia que eles já viviam assim? Isso já não importava mais. Desde que se conheceram, tudo passou a ser diferente. O frio da noite passou a ser mais suportável e, seus dias, mais felizes.
Já não eram mais sozinhos no mundo.
- Hoje é dia dos namorados não é? – Perguntou a mulher
- É mesmo, é hoje. – Respondeu o homem envergonhado por não poder ser capaz de comprar um presente para sua mulher. – Eu não me esqueci, apenas... Desculpe-me por não ter dinheiro para lhe comprar um presente decente. – E desviou seus olhar, envergonhado.
- Não fale isso – disse ela levantando o rosto dele e encarando seus olhos tristes. – Dinheiro é necessário, mas não é vital, afinal mesmo com dificuldades não continuamos vivendo? Presentes são bons de se ganhar também, é verdade, mas quantas pessoas podem ter a sorte de ganhar o presente que estou recebendo hoje? –
Sem entender o que acabara de ouvir, ficou olhando curioso sem entender do que ela estava falando.
- De que presente você está falando? –
- O de passar a noite do dia dos namorados com alguém que amo e que tenho certeza que me ama também. –
Sentindo as lágrimas brotarem em seus olhos ele a beijou e por um momento não havia mais pobreza, frio, cidade ou qualquer outra coisa além deles.
- Eu te amo. – sussurrou ele
- Eu também te amo, mas vamos dormir agora? – Perguntou ela gentilmente enquanto já ia se aninhando nos braços dele.
- Feliz dia dos namorados. – disse ele fechando os olhos e puxando ela para mais junto de si.
- Feliz dia dos namorados para você também. – respondeu ela, também de olhos fechados e se sentindo realmente feliz, a despeito da vida dura e sofrida que levavam.
E lá, naquela marquise, esquecidos pelo mundo que os cercava, mas aquecidos pelo amor que sentiam um pelo outro, dormiram.
E lá em cima, Eros sorria.
- Que diabos é esse sorriso? Aquilo não diz nada, são apenas dois vagabundos que não tem onde caírem mortos. São apenas dois no meio de muitas pessoas ricas e outras não tão ricas assim, mas que, de qualquer forma, são capazes de pagar ou vender seus corações a quem fizer a melhor oferta. Dois que não tem nada além de um ao outro, perdidos no meio de muitos que possuem tudo e às vezes todos. –
- Exatamente meu caro. E é exatamente ai que está à diferença entre nós dois. – disse Eros enquanto se levantava, apoiando-se em uma espécie de bengala. Não, não era uma bengala. Era um arco.
- Nem pense em ir saindo de fininho. Pode ir se explicando. -
- A diferença entre nós é que para você existir, precisa de muitos que só conseguem dar valor ao que podem comprar.-
- Sim e daí? –
- E daí que, para eu continuar a existir, só preciso de duas pessoas, que sequer precisam ter dinheiro. Para eu continuar a existir, preciso apenas de dois corações capazes de ver o que lhes é oferecido, sem preço algum, e assim sendo, sejam capazes de ver o verdadeiro valor desse ato. –
- Ta de brincadeira comigo né? –
A meia-noite chega e com ela, a primeira badalada do sino da catedral começa a soar pela noite, marcando o fim de mais um dia dos namorados.
- Ei, ta indo para onde? – perguntou Greed se levantando e tirando a poeira de seu terno escuro.
- Para casa, afinal já fiz o que eu tinha para fazer. -
- E posso saber o que foi que você fez? –
Subindo no beiral do prédio, o jovem loiro se deteve um instante e respondeu a seu companheiro sem olhar para trás.
- Provei que não importa a força que você tenha, ela nunca será capaz de superar o amor. – E sorrindo para a lua que brilhava, ele tirou sua capa, revelando enormes asas brancas. Entre elas, via-se uma aljava negra, repleta de flechas douradas que brilhavam como se tivessem luz própria.
- Até o ano que vem meu amigo –
E sem olhar para trás, abriu suas asas e, sentindo o vento em seu rosto, pulou do prédio, desaparecendo na escuridão.
- É meu velho, até o ano que vem. – resmungou Greed ainda em pé, olhando para a noite que o cercava e ouvindo a última badalada do sino morrer na noite.
E por um momento sentiu uma leve ponta de tristeza ao perceber que mesmo possuindo vários corações, estava ali sozinho.

O primeiro texto

O primeiro texto a gente nunca esquece.
Da mesma forma que nunca se esquece o primeiro amor, a primeira desilusão e por ai vai.
É claro que esse não é o meu primeiro texto, mas digo que é o primeiro que realmente vale a pena ser mostrado.
O mais irônico nele é que um texto que fala de um amor sincero e verdadeiro, tenha nascido de uma ilusão que não muito depois, se tornaria uma desilusão.
Enfim, quem disse que coisas boas não podem nascer de coisas ruins?
Enfim, espero que gostem dele.



A menina e a estrela

Há muito tempo atrás em uma pequena cidade, vivia uma menina que amava as estrelas.
Para ela as estrelas eram muito mais que corpos celestes vagando a esmo pelo espaço infinito. Tampouco eram simples buraquinhos no véu negro da Dama Noite, através dos quais, a luz do seu sorriso podia tocar nossos olhos.
Para essa menina, as estrelas eram a própria luz de Deus, a brilhar eternamente no céu para nos lembrar que nunca estamos sozinhos. Eram “faróis” a nos guiar eternamente pelas trevas que às vezes cobrem nossas vidas, enfim, para ela as estrelas eram as mais belas formas de expressão da força que criou a vida.
Para essa menina, as estrelas eram sua vida.
Conforme o tempo passava seu amor por elas crescia tanto que um dia ela começou a querer se tornar uma delas.
E na esperança de conseguir, ela começou a ler livros, perguntar a pessoas tidas como sábias, a rezar e implorar para que Deus a ajudasse, mas nada disso lhe deu a resposta que tanto desejava. A resposta que lhe permitiria ocupar seu lugar no céu e voar com suas irmãs pelas infinitas noites que a terra ainda há de ver.
Conforme o tempo passava seu desejo crescia e junto com ele sua tristeza também.
Não sentia mais a velha alegria que tomava seu coração ao olhar de sua janela as estrelas, agora, apenas sentia-se triste por não estar com elas. A luz que brilhava em seus olhos e transbordava em seu sorriso começou a morrer conforme a escuridão que tomava seu coração aumentava. Não havia mais sorriso em seu rosto, apenas lágrimas.
Mas como nada nessa vida acontece por acaso, o desígnio decidiu intervir.
Um rapaz que sempre a admirou e sempre amou a luz que vinha do sorriso daquela menina notou que havia algo errado. A luz dela havia começado a se apagar. Notou que agora, nuvens de tristeza faziam cair chuvas de lágrimas que rolavam por todo seu rosto apagando aquela chama que aquecia o coração dele.
Ele resolveu ajudá-la e um dia disse a ela que sabia de uma forma de transformá-la em uma estrela.
Ele lhe disse que debaixo de uma árvore que ficava no centro da praça da cidade, ela encontraria a resposta que tanto queria.
Ao ouvir isso sua esperança renasceu e certa de que, agora conseguiria o que tanto desejava, partiu em direção a praça.
Ao chegar à praça e avistar a árvore sentiu um aperto em seu coração, uma mistura de ansiedade e medo. E se fosse uma piada? Uma brincadeira cruel do rapaz? Não, seu coração dizia que não era.
Se apegando a isso, caminhou, com toda a fé que cabia em seu coração, em direção a árvore, aonde ao chegar, encontrou um pacote.
Ao abri-lo achou uma carta endereçada a ela que dizia o seguinte:
“Porque desejar o brilho das estrelas quando seus olhos têm um brilho maior do que o de todas elas juntas?
Porque desejar iluminar um pedaço do céu que outra estrela já ilumina quando lhe foi dada à missão de sozinha, iluminar o coração daqueles que tem a sorte de tê-la em suas vidas?
Porque querer ser apenas mais uma estrela no meio de tantas outras que habitam o firmamento quando Deus lhe permitiu ser a única estrela a viver na terra entre os que precisam de sua luz para serem felizes?
Sei que lhe disse que sabia uma forma de te transformar em uma estrela, mas não posso fazer isso. Não apenas porque eu não sei como fazer isso, mas sim porque não preciso fazer isso.
E não preciso fazer isso porque você já é uma estrela.
Você é e sempre foi o meu farol, cuja luz me guia pelas trevas que ás vezes cobrem minha vida e meu coração.
Você é e sempre será a mais bela forma que a vida criou para expressar toda a sua beleza. Uma beleza que não pode ser duplicada e nem mesmo alcançada por estrela nenhuma.
Você é vida, minha vida.
Você sempre foi uma estrela, minha estrela.
Nunca se esqueça disso.”
Ao terminar a carta uma lágrima correu de seus olhos e essa única lágrima, que não nasceu da tristeza e sim da alegria que agora começava a voltar ao seu coração, foi o combustível que faltava para seu sorriso voltar a brilhar. E ele brilhou de uma forma que há muito não brilhava.
E a partir desse dia ela nunca mais desejou ser como suas irmãs do céu que tanto admirava, pois agora tinha certeza que já era uma delas.
E de um canto escuro da praça, um rapaz sorria feliz, pois tinha conseguido fazer sua estrela voltar a brilhar.