Uma certa vez, uma amiga muito querida me pediu um texto de aniversário.
E ela me disse algumas coisas sobre ela para que eu tivesse de onde começar. Duas coisas me marcaram sei lá bem porque: A primeira era que ela adorava borboletas e a segunda era que a idéia de crescer e se tornar uma adulta a assustava. Acho que isso foi o que mais mexeu comigo pois, eu também não sou muito fã dessa idéia.
De qualquer forma escrevi o presente dela e acho que sem querer, acabei ganhando um também.
Ao me pedir para fazer um conto para ela, ela me deu a inspiração para fazer um dos mais bonitos (sem falsa modéstia) dos que já escrevi.
Então, acho que te devo um obrigado Juzinha.
A menina que se tornou uma borboleta
Há algum tempo atrás, em uma cidade como outras tantas cidades que existem por ai, havia uma garota que não queria crescer.
E quem pode culpá-la por isso? Afinal, não tem tantas coisas boas no mundo dos adultos quanto há no mundo das crianças não é mesmo? Mas como crescer é algo que não podemos evitar, ela tinha que se tornar mais uma adulta no meio de tantos outros adultos chatos, e por causa disso, ela estava triste.
Ia completar 12 anos, uma idade em que ainda não se é verdadeiramente um adulto e tão pouco se continua a ser criança. “Você vai se tornar uma mocinha linda” sua mãe dizia sem notar a cara que ela fazia cada vez que tinha que ouvir isso. Sabe aquela cara de quem experimentou limão com sal pela primeira vez e definitivamente não gostou? Sabe? Então, era exatamente essa cara que ela fazia e, mesmo com a festa que sua mãe estava preparando para aquela noite, esse gosto não melhorava.
Debruçada na janela de seu quarto, que dava para um imenso bosque onde tantas vezes ela se divertiu procurando fadas e duendes, ela pensava nos passeios que não poderia mais fazer ou nas aventuras das quais não poderia mais participar, afinal, como sua mãe sempre fazia questão de dizer - Isso é coisa de criança.
Então, já que ela estava triste, só havia uma coisa a fazer. Uma coisa que tantas vezes ela já fizera quando estava triste e sempre tinha ajudado a resolver esse problema.
Vestiu apressada sua roupa de passear no campo (não é engraçado como os adultos adoram criar roupas para todas as ocasiões, para missa, para festas, para passear no campo e por ai vai?) e saiu silenciosa sem avisar ninguém. Mas isso também não importava já que todos conheciam esse costume que ela tinha de sair para passear no bosque que ficava logo além dos portões de sua casa.
O tempo estava perfeito, o céu azul parecia uma piscina dentro da qual, pouquíssimas nuvens que mais pareciam pequenos bichos feitos de algodão, nadavam de um lado para o outro ao sabor de uma brisa morna que soprava. Ela caminhou até a entrada do bosque e se deteve por um instante. Sentia-se estranha, como se ela mesmo fosse uma estranha naquele bosque tão conhecido e ali não fosse mais bem vinda. Será que crescer era assim? Se sentir indesejada em todos os lugares onde viveu sua infância? Isso não importava, se aquela seria a última vez que ela iria poder ir até lá, sendo bem vinda ou não, ela iria se despedir do velho bosque e de suas amigas.
Caminhou pela velha trilha picada entre as árvores e se dirigiu até a clareira onde sabia que suas amigas logo iriam aparecer. A cada trecho para o qual dirigia o olhar, uma lembrança surgia junto à imagem que via. Olhou para um velho carvalho e viu-se nessa árvore junto com uma amiga, deixando comida em um buraco no tronco para alimentar os duendes que ela tinha certeza que viviam por ali (mesmo sem nunca ter visto um deles). Mais adiante em uma velha árvore com os galhos já secos e retorcidos lembrou-se da vez em que caiu de um desses galhos e machucou os joelhos, ao tentar subir para colocar um filhote de passarinho de volta no ninho. Quantas lembranças alegres, lembranças que iriam marcar para sempre sua memória e, em alguns casos, os joelhos e cotovelos também.
Finalmente chegou a fronteira do bosque com a clareira que havia lá bem no meio dele. Ela sempre se referiu a aquela mudança de terreno como fronteira, porque tinha ouvido essa palavra em um programa de televisão e havia achado essa palavra muito bonita. Era por volta de umas quatro e meia e o Sol já ia começando a fazer a sua curva rumo ao lugar onde ele passaria a noite. O bosque terminava em um pequeno barranco que descia por uns dois metros até a clareira. De cima do barranco ela olhava para aquele pedaço de terra praticamente nu, se comparado ao resto do bosque, e já não se sentia mais uma estranha. Era como se aquele pequeno pedaço descampado do bosque fosse mágico, e sua mágica, capaz de espantar a tristeza que sentia.
Agora é um momento propício para uma pausa em nossa história, apenas para descrever esse pequeno pedaço de terra. Sabe aquelas paisagens que só vemos em papéis de parede de computadores ou em imagens de quebra-cabeças? Isso não era nada comparado a aquele lugar. A clareira ficava numa parte mais rebaixada do bosque, como se tivesse sido cavada e depois cercada por árvores de todos os tipos. Bem no meio dessa clareira havia um pequeno lago de águas transparentes, onde era possível ver os peixes nadando calmamente, alheios ao mundo que os cercava. A grama era baixa e de um verde que tinta nenhuma conseguiria reproduzir. Na margem do lago havia um grande ipê-roxo que estava sempre florido, como se para ele as estações não significassem nada. Logo abaixo dele havia uma pedra lisa em que ela costumava sentar e que servia perfeitamente como um banco. Ela até achava que ela havia sido colocada ali intencionalmente, para que algum viajante que por ali passasse, pudesse se sentar e admirar aquele lugar tranqüilamente, protegido pela sombra do sempre vigilante ipê-roxo. Agora talvez vocês perguntem o que tem de tão bonito ou especial em um lugar aparentemente tão simples como esse, onde sequer tem uma cachoeira ou pelo menos uma cascatinha. Um lugar comum e simples certo? Certíssimo, caros leitores, um lugar comum e simples, mas de uma simplicidade que apenas Deus conseguiria imprimir a aquele local. O tipo de lugar que transpira paz através de cada folha, através de cada ser que ali habita. Aliás, esse negócio de que para ser bonito tem que ser todo cheio de coisas e detalhes, provavelmente foi inventado por algum adulto.
Voltando a nossa menina, ali estava ela, admirando aquele pequeno pedaço do paraíso que tantas vezes visitou, mas que sempre parecia novo a cada nova visita. Uma amiga sua havia lhe dito certa vez que o lugar era mágico por que os duendes do bosque vivam ali e sua mágica, tornava aquele lugar mágico. E ela acreditou mais uma vez, mesmo sem nunca ter visto um duende com seus próprios olhos. Mas para uma criança, vale muito mais acreditar com o coração, do que ver com os próprios olhos.
Desceu pelo barranco e foi caminhando em direção a pedra que ficava embaixo do ipê-roxo. Como ela gostava de se sentar ali, a sombra da velha árvore, sabendo que ali estava segura, sabendo que ali, o velho ipê olhava por ela.
Olhou em seu relógio e viu que eram quase cinco horas da tarde, portanto suas amigas iriam aparecer a qualquer instante.
Pelo menos deveriam.
Em todos os dias em que havia ido lá, elas nunca haviam se atrasado, mas hoje elas ainda não tinham aparecido.
Será que até elas já a haviam abandonado? Não eram mais suas amigas?
- Com licença menina. Posso me sentar aqui também? Cansei para chegar até aqui. O caminho continua o mesmo, mas as pernas já estão velhas e cansadas.
Assustada, a menina caiu da pedra e sentada na grama, procurava quem havia dado aquele baita susto nela.
Em pé, apoiado no tronco do ipê e enxugando o suor da testa com um lenço, havia um senhor baixinho e com uma longa barba branca que chegava até sua barriga. Ele era uma figura estranhamente engraçada com sua longa barba presa no cinto, uma careca tão lisa que ela teve certeza que seria capaz de refletir a luz do Sol se o ipê não estivesse fazendo sombra sobre ela. Usava uma calça e blusa verdes de um tom quase semelhante ao das gramas que formavam o tapete que cobria aquela clareira.
Olhando para ele, ao invés de sentir medo ela sentiu uma enorme vontade de rir, e teve que se esforçar para não começar a fazer isso na cara dele.
- E então menina, posso me sentar?
- Acho que sim, acho que tem lugar para mais um ai.
Subindo na pedra, ele se ajeitou em uma pequena reentrância que parecia ter sido feita sob medida para ele, e de lá ficou olhando para o meio do campo.
- Fazia um bocado de tempo desde a última vez que vim até aqui, mas hoje, me deu saudade de umas velhas amigas que costumava encontrar por aqui. Eu vinha sempre quando era criança, mas depois que a gente cresce, fica meio difícil de se arrumar tempo para as coisas que gostávamos de fazer quando criança, mas isso não acontece comigo. Não mesmo mocinha. Sempre reservo um tempo para elas.
- Nem me fale em crescer, vim aqui me despedir.
A tristeza que a menina sentiu ao dizer isso foi tanta que seus olhos marejaram e ela teve que fazer força para não deixar nenhuma lágrima escorrer.
- Não diga isso minha jovem. Sabe, uma vez eu vim até aqui achando que tinha que me despedir, mas eu estava enganado.
- Como assim? – perguntou a menina olhando novamente para o velho com a mesma curiosidade de uma criança que acaba de ganhar um grande presente e não sabe o que se esconde por baixo do embrulho.
- Bom, quando eu estava para completar doze anos de idade, meus pais viviam dizendo que eu ia me tornar um homenzinho e que a partir dali, eu teria que parar com certas coisas que eram coisas que apenas as crianças faziam. Fiquei triste e me recusei a aceitar isso, não queria crescer de jeito nenhum.
- Eu sei muito bem como é isso. Mas e daí o que aconteceu?
- Bom, vim até este mesmo lugar e me sentei aqui, pensando no que eu podia fazer para não crescer. Foi então que eu as vi pela primeira vez.
- Você também gosta delas?
Mesmo sem o estranho senhor ter dito quem eram suas amigas, ela tinha certeza que ambos falavam da mesma coisa. Ambos falavam das inúmeras borboletas que habitavam o bosque e que no final do dia saiam em bandos, cobrindo os céus enquanto rumavam para onde o vento as carregava.
- Se gosto? É claro que sim, afinal não vim até aqui, mesmo com minhas velhas pernas resmungando contra o trabalho que dei a elas, apenas para vê-las?
Ela sentiu sua face corar, afinal fora de fato uma pergunta meio desnecessária.
- Bem, continuando – ele deu uma limpada na garganta e fez uma pausa como se quisesse lembrar onde havia parado e então continuou – eu estava sentado bem ai onde você está e então as vi saindo do bosque, centenas, milhares delas voando das árvores em direção aos céus e desejei ser como elas, sempre jovens e bonitas, mas foi ai que descobri que para as borboletas se tornarem borboletas, elas precisam crescer também.
- Como assim? Elas também precisam se tornar... adultas? – Ela sussurrou a palavra “adulta”, quase como se fosse algo proibido de se dizer.
- Sim minha cara, exatamente isso. Acontece que quando eu estava sentado aqui, notei que havia algo pendurado no galho desse velho ipê. Olhei mais de perto e vi que era um pequeno casulo que ia se esticando, inchando e abrindo, como se algo dentro dele quisesse muito sair de lá de dentro. E de fato queria. Eu sabia que as lagartas faziam casulos como aqueles, mas para mim elas faziam seu casulo e lá permaneciam para sempre. Mas foi então que o casulo se abriu e vi duas grandes e coloridas asas saírem lá de dentro. Daquele casulo feio e escuro, saiu a mais linda borboleta que eu já havia visto, e foi então que eu entendi.
- Entendeu o que? – A curiosidade da menina era tanta que parecia querer saltar de seus olhos e agarrar o pequeno velho e fazer com que ele contasse tudo, sem esconder um detalhezinho sequer.
- Entendi que as lagartas precisam crescer para se tornarem borboletas. Que chega um tempo em que elas devem crescer, se transformar e deixar algumas coisas para trás, para já adultas e com suas asas, ganharem os céus. E então eu entendi que eu era a mesma coisa.
A menina olhava para ele admirada, mas ainda não entendia exatamente o que ele queria dizer e ele pode notar isso em seu olhar.
- O que quero dizer garota é que quando somos crianças, somos como as lagartas. Pequenos, frágeis e desajeitados. Sonhamos com o céu, mas gostamos de ficar no chão que é o lugar que conhecemos e onde nos sentimos seguros, mas então chega o tempo de se tornar adulto e ai finalmente ganhamos asas para voarmos para lugares que antes só nossos sonhos alcançavam e nos assustamos com a distância que o nosso velho e conhecido chão está de nós e com medo das novas coisas que vemos, somos incapazes de ver que elas também são bonitas e interessantes. Mas o que realmente importa, é que mesmo tendo crescido, ganhado asas e se tornado mais bonita, a borboleta ainda carrega dentro de si a pequena e desajeitada lagarta. Ela cresceu, mudou, mas por dentro continuou sendo a mesma de sempre.
Agora ela começava a entender o que ele queria dizer e um pequeno sorriso começou a despontar em seu rosto.
- Isso mesmo menina, mesmo que tenhamos que crescer, nos tornarmos adulto e abrirmos mão de algumas coisas, sempre podemos carregar dentro de nós, a criança que fomos um dia. E quando entendi isso, percebi que crescer não é ruim. O ruim mesmo é se esquecer da criança que já fomos um dia. E se nunca nos esquecermos dela, ainda poderemos encontrar alegria nas novas coisas que irão surgir em nossa nova vida.
Ele estava certo. Ela sempre admirou as borboletas e às vezes desejava ser como elas, livre para voar para onde quisesse, mas nunca notou que antes de ganhar suas asas, as pequenas lagartas tinham que crescer e também abrir mão de muitas coisas, para então ganhar várias outras. E mesmo que agora elas tivessem asas para ganhar os céus, elas sempre podiam se lembrar da lagarta que foram um dia e voltar aos chãos. Sempre que quisessem.
Agora ela não se sentia mais triste, pelo contrário, estava até alegre. De repente, todo o medo que sentia de se tornar uma “mocinha” havia passado e imagens dela conhecendo novos lugares que nunca antes poderia ter ido começaram a pipocar em sua mente.
- Senhor, agradeço muito por ter me contado essa história, mas infelizmente o dia está acabando e preciso ir embora. Minha mãe está preparando uma festa de aniversário para mim hoje e não posso me atrasar. Só fico triste por não poder ter visto elas hoje. Acho que não queriam me ver e acabei atrapalhando o senhor também.
- É mesmo? Que coisa, mas então o que elas estão fazendo aqui?
Virando-se em direção as árvores a menina finalmente as viu. Eram centenas senão milhares de borboletas de todas as cores e tamanho. Vinham saindo de dentro do bosque e seguiam pelos caminhos invisíveis que o vento traçava pelo ar. Era a coisa mais linda que ela já havia visto e não importava quantas vezes visse, sempre seria como a primeira vez.
- Agora que já as viu, vá depressa ou sua mãe irá ficar preocupada.
- O senhor está certo. Muito obrigado por tudo senhor..?
- Bogan, meus amigos me chamam de Bogan.
- Então até mais senhor Bogan. Obrigado.
E se virou em direção ao bosque
- Eu que agradeço Juliana, pela companhia e pela comida que sempre me deu.
Ao ouvir isso ela não se deu conta de imediato, que aquele estranho senhor sabia seu nome mesmo sem ela ter dito a ele como se chamava. Foi como se seu cérebro não tivesse entendido o que seus ouvidos ouviam. Ela tinha certeza que não havia dito a ele seu nome e muito menos, dado comida a ele. O mais próximo de dar comida a alguém naquele bosque foram ás vezes em que ela e sua amiga deixavam comida para os duendes...
Duendes? Não era possível, não podia ser possível. Peraí, porque não era possível? Porque não podia ser possível? Tomada por uma alegria enorme que se misturava com uma ansiedade que parecia ocupar todo o seu peito, ela se virou, mas tudo que viu foi a pedra, protegida pela sombra do velho ipê-roxo.
Rindo e se sentindo mais feliz do que jamais se sentiu em qualquer dia alegre do qual ela pudesse se recordar, ela retomou seu caminho pelo bosque até sua casa. Já estava escuro quando ela chegou e sua mãe a esperava na porta.
- Por onde você andou Juliana?
- Estava no bosque mamãe, vendo minhas amigas e um velho amigo.
- Velho amigo?- perguntou sua mãe erguendo uma sombrancelha
- Sim mamãe, um velho amigo – e começou a rir
- Tudo bem mocinha, vamos entrar e tomar banho, pois você tem uma festa de aniversário hoje.
Ao entrar em casa, notou em um canto escuro do batente da porta um pequeno casulo e se deteve por um momento.
- Vamos Juliana, entre e vá tomar seu banho, afinal hoje você se tornará uma linda mocinha.
Olhando para o pequeno casulo com um sorriso nos lábios, ela disse “é verdade, hoje eu me torno uma mocinha”.
- E você está pronta para se tornar uma mocinha?
Ainda sem se virar ela disse – Não mamãe, estou pronta, mas não para me tornar uma mocinha.
- A não? Então está pronta para se tornar o que, se posso saber?
E olhando nos olhos da mãe disse - Estou pronta para me tornar uma borboleta – e gargalhando subiu as escadas rumo ao seu quarto, deixando sua mãe parada na porta sem entender nada.
Naquela noite, a menina que morava naquela casa comemorou seu décimo segundo aniversário com seus muitos amigos e já não se sentia triste por não ser mais uma criança. Brincou, riu e não pensou mais no que essa nova fase iria tirar ou trazer. Apenas se divertiu. Depois de todos irem embora, acompanhou até o portão de sua casa, a última convidada de sua festa, uma velha amiga que há algum tempo atrás, havia lhe dito que os duendes que viviam naquele bosque gostavam de ganhar comida.
E naquela mesma noite, sentado em uma árvore próxima ao portão daquela mesma casa, um velho baixinho, com sua enorme barba branca presa ao cinto, e com a careca tão lisa que refletia o brilho da lua, se divertia comendo um pedaço de bolo que uma menina que tinha se transformado naquela mesma noite, em uma linda borboleta, havia lhe deixado.
terça-feira, 23 de setembro de 2008
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