terça-feira, 23 de setembro de 2008

Assassinos

Este conto é o que mais se aproxima do tipo de coisa que eu gosto de escrever.
Ele não fala apenas sobre assassinos.
Fala sobre pessoas que gostam de julgar as outras do alto de seus pedestais, erguidos sobre o falso moralismo e o orgulho. E fala de como é fácil para alguém fazer tudo isso ruir.
Podemos criticar, julgar e apontar o dedo para quem quisermos, mas ninguém será mais implacável que nossa própria consciência.


Assassinos


A noite estava silenciosa.
Ou talvez apenas aquela ala do presídio estivesse silenciosa, a despeito de todos os sons que tentavam penetrar através de seus muros, vindos de fora.
Era silenciosa e fria como um túmulo, e talvez de fato fosse para algumas pessoas que por lá passavam e jamais saiam.
Aquela ala quase deserta do presídio guardava os criminosos mais perigosos, aqueles que não tinham condição nenhuma de voltar a viver em sociedade, e lá, aguardavam a única solução encontrada para pessoas como eles: a execução.
Era uma quinta-feira e na manhã do dia seguinte, o único prisioneiro que residia naquela ala naquele momento, seria executado.
Seu nome era Carlos e havia estuprado e matado várias mulheres, até cair em uma armadilha da policia e ser preso ao tentar estuprar uma policial disfarçada.
Sentado em seu catre, estava silencioso e estranhamente calmo. Sabia que vivia as últimas horas de vida e mesmo assim, estava tranqüilo, como se estivesse sentado em um banco qualquer de uma praça qualquer apena esperando as horas passarem.
- Como você consegue ficar tão calmo sabendo que amanhã irei te matar?
Do lado de fora, sentado em uma pequena cadeira havia um homem comum do tipo que você olha e logo em seguida esquece. Era pequeno, na casa dos seus 60 anos e seu tipo físico não era o tipo que costumava impressionar ninguém. Tinha uma pequena barriga que já escapava das calças e um rosto doce e amoroso, do tipo vovô. O óculos que usava contribuía ainda mais para a errônea impressão de que aquele pequeno senhor era um simples e bondoso vovô. Mas por baixo daquelas lentes, seu olhar era
intimidador. Seus olhos tinham uma frieza sem igual, eram olhos de um predador, olhos que já tinham visto a morte de perto muitas vezes.
Ele tinha o costume de passar a última noite com sua futura vítima, não para confortá-la ou amenizar o sofrimento que viria, mas para mostrar que, executar um condenado fazia tanta diferença para ele quanto dar uma chinelada em uma barata. Ele achava que aquilo era uma forma de fazer com que eles começassem a pagar pelos seus crimes até o derradeiro momento em que ele puxaria a alavanca que transportaria quem quer que estivesse sentado na cadeira elétrica, diretamente da terra para o inferno.
Seu nome era João Pedro, mas para os funcionários do presídio, ele era O Algoz e até aquele dia, ele nunca tinha tido dúvidas sobre o trabalho que realizava.
- E então, não quer aproveitar suas últimas horas e bater um papo?
- Ok, se você sente tanta necessidade de conversar, vamos lá. Do que quer falar? – disse Carlos calmamente, ainda sentado em seu catre.
Era uma cena estranha, dois matadores frente a frente apenas separados por uma grade. Um que matava pelo desejo de fazê-lo e outro que matava por ser seu trabalho. Um que matava por diversão e outro que matava por obrigação. Dois homens com histórias diferentes, com motivações diferentes, mas ao mesmo tempo, com tantas coisas em comum.
- Por que você matou todas essas mulheres? – O Algoz continuava falando entre uma mordida e outra em seu sanduíche.
- Uma pergunta engraçada vinda de você. Eu matava porque eu queria, porque gostava de sentir que a vida delas dependia da minha vontade e eu podia tirá-las quando eu bem quisesse. Assim como você.
Olhando por cima de seus óculos, O Algoz encarou o prisioneiro por alguns instantes. Limpou a boca com um lenço e calmamente respondeu.
- Eu não sou como você. Eu não mato as pessoas por prazer, ou porque quero me sentir algum tipo de deus. Mato porque é meu trabalho e alguém precisa livrar as ruas de pessoas como você.
- E você gosta do seu trabalho?
- Não posso dizer que seja dos piores.
- Então você gosta do que faz, e isso te torna exatamente como eu. A única diferença entre nós é que eu reconheço o fato de gostar disso. Sou mais corajoso.
- Mas no momento, coragem não vai mudar nada. Amanhã tudo estará acabado para você. Mas, de todos os que já executei você, é o único que não está se cagando de medo e me implorando para soltá-lo, dizendo que se arrepende de tudo o que fez e prometendo jamais fazer novamente.
- Desculpe se te desapontei, mas eu sempre soube que um dia isso aconteceria. Sou um caçador, mas todo caçador, tem seu dia de caça e eu estou vivendo o meu agora. E agora sou eu quem tem uma pergunta para você. Posso?
- Claro que pode, afinal isso é uma conversa não é?
- Pois bem, quantas pessoas você já matou?
- Acho que quase uma centena de condenados, talvez um pouco mais ou um pouco menos.
- E eu que matei apenas treze já sou chamado de assassino. Essa sim é uma marca que vale o título de assassino. O velho senhor com sua face sempre calma engoliu em seco ao ouvir isso. Nunca nenhum condenado havia falado assim com ele, e muito menos tocado num ponto que ele sabia que existia, mas tentava manter escondido dentro de si na esperança de que ao se esquecer dele, ele desapareceria. Ou pelo menos não incomodaria.
Ele gostava do que fazia e essa era a verdade. Sentia-se bem ao executar um condenado. Ele dizia que se sentia orgulhoso de prestar um serviço a sociedade, de ser um instrumento da justiça e que isso era a motivação para executar seu trabalho, mas no fundo ele sabia que isso era apenas conversa fiada. Ele também sentia prazer no que fazia.
- O que houve? Te deixei sem palavras?
O condenado esboçava um leve sorriso ao perceber que por mais que o velho tentasse disfarçar, ele tinha tocado em algo, e isso tinha começado uma reação em cadeia.
- Até parece que um maldito assassino conseguiria me deixar sem palavras. Apenas estou pensando em como é ridícula essa sua tentativa patética de me igualar a você.
- Não senhor, não mesmo. Sem chances de eu me igualar a você. Você tem uma larga vantagem sobre mim. De quantos mesmo? Uma centena mais ou menos?
E finalmente soltou uma gargalhada gostosa, alegre, do tipo que se ouve de alguém que acaba de ouvir uma piada muito engraçada e não de alguém que está para ser morto.
- Você é completamente louco. – disse o velho senhor, deixando uma ponta de irritação escapar em sua voz e com isso quebrar toda aquela máscara de indiferença que vinha exibindo.
- Não, eu não. Você sim é louco por viver duas vidas. Uma para seus patrões, que te mantém aqui porque sabem que você é um assassino de sangue frio, o tipo exato para fazer esse tipo de trabalho e outra para si próprio, na qual você se ilude achando que é apenas um funcionário obedecendo ordens. Eis outra semelhança entre nós: fizemos o que nos mandavam fazer.
- Agora vai querer me dizer que o demônio falava com você ordenando que cometesse esses assassinatos? Que o diabo possuia seu corpo e você não tinha controle nenhum sobre o que fazia?
- Não, longe disso. Eu matava porque minha vontade de fazer isso me mandava fazer. E no seu caso é mais patético ainda, pois você precisa que outra pessoa te mande fazer algo que bem lá no fundo sente vontade de fazer. Eu faço porque quero e não preciso de uma “forcinha” de alguém. Acho que no fundo sou mais corajoso que você.
A irritação do velho carrasco estava cada vez mais aparente, e por mais que ele quisesse responder a altura daquele estranho homem que falava coisas que nunca haviam tido coragem de dizer a ele, simplesmente não conseguia achar palavras para fazer isso.
- Você não sabe o que está dizendo, não temos nada de parecido, somos....
- Completamente diferentes? – interrompeu o condenado - Mesmo eu tendo sentido prazer ao fazer tudo o que fiz, ainda assim, à noite eu sentia remorso, pois elas eram jovens e as privei de várias coisas ao matá-las, mas isso não importa mais, pois amanhã, não terei mais problemas de consciência para me preocupar. Mas e você?
Pela primeira vez sentindo medo do que poderia ouvir de alguém que dali há algumas horas ele iria matar, respirou fundo e perguntou.
- O que tem eu?
- Como você consegue chegar em casa, olhar para sua mulher e com tanto sangue nas mãos, por a cabeça no travesseiro e dormir tranquilamente? Nunca sonhou sonhos em que suas vítimas vinham se vingar?
Como ele podia saber disso? Há algum tempo ele já vinha tendo poucas horas de sono tranqüilo. Dormia e sonhava com os rostos suplicantes das pessoas que tinha matado. Elas não reclamavam por ter sido ele a matá-las, mas sim por ele ter sentido satisfação ao fazê-lo. Provavelmente um psicanalista diria que isso era a forma que a sua consciência arrumou para perturbá-lo e mostrar que não estava tudo bem ao fazer o que vinha fazendo há anos.
- Pelo visto também não consegue dormir não é? Realmente somos muito parecidos mesmo.
- Você não sabe do que fala. Eu não sou um assassino como você. Eu sou um instrumento de justiça, alguém que vive para impedir que monstros como você, façam as pessoas sofrerem. – em pé, segurando as barras da grade que prendiam Carlos, o velho carrasco gritava. – Já chega desse papo sem sentido. Amanhã tudo estará terminado e você pagará pelos crimes que cometeu e serei eu, a fazê-lo pagar.
Virou-se e começou a juntar suas poucas coisas que haviam sido colocadas no chão, ao lado da cadeira onde tantas vezes havia ficado sentado diante de assassinos de todos os tipos, assassinos que nunca tinham conseguido perturbá-lo dessa maneira.
- Já vai? Espero não ter tirado seu sono com essa nossa pequena conversa. Durma bem, meu irmão, ou tente pelo menos...
- Amanhã quero ver você manter esse sorriso em seus lábios quando eu abaixar a alavanca que vai mandar você direto para o inferno, sem nenhuma parada no caminho.
Virou-se e despediu-se do condenado, mais por hábito do que por desejo de ser simpático ou manter a aparência formal.
- Não, não nos veremos amanhã. – disse Carlos, mais para ele mesmo ouvir do que para o velho carrasco que saia pisando duro com passos apressados. Deitou-se em seu catre e alegre, começou a assoviar uma canção qualquer.
Saindo do presídio, João Pedro estava desorientado. Como a conversa poderia ter tomado aquele rumo? Normalmente era ele quem conduzia o papo até levar os condenados a se confrontarem com seus fantasmas e se divertia ao ver o desespero deles diante das coisas que encontravam dentro de si mesmos, mas algo havia saído errado ali. Era ele quem havia sido posto a prova, era ele quem tinha encontrado seus demônios interiores, e o que viu era muito assustador.
Chegou em sua casa e foi direto ao banheiro. Precisava de um banho urgentemente. Tinha que tirar o cheiro do presídio do seu corpo e com isso, talvez tirar aquela conversa da cabeça. Entrou rápido, sem sequer dar um beijo de boa noite em sua esposa que estava deitada em sua cama lendo. Estranhando perguntou a ele se estava tudo bem.
- Sim, querida, está tudo bem. Só vou tomar um banho, pode voltar para seu livro.
Tirou a roupa e ligou o chuveiro, mas não entrou. Olhava para o espelho e não reconhecia seu rosto. Ali não estava mais um servidor da justiça. O que ele via olhando de volta para ele do espelho, era um assassino frio que já havia matado centenas de pessoas e que havia sentido prazer ao fazer isso. Era um rosto que ele via pela primeira vez, mas que já conhecia há muitos anos.
Nos olhos desse assassino ele via os rostos contorcidos de dor e deformados pela eletricidade que os atravessava durante a execução. A agonia deles o invadiu de uma única vez e o desespero cresceu dentro dele como um punhal frio que o rasgava de dentro para fora.
Doía.
Doía muito na verdade.
Ele tinha que fazer a dor parar e viu como fazer isso num pequeno brilho prateado sobre a pia. Sua boa e velha navalha, que ele sempre usou para fazer a barba antes de cada execução. Para ele, o momento da execução era algo solene e por isso ele gostava de estar sempre muito bem arrumado. Penteava seu cabelo branco como uma lápide de mármore e usava sempre um terno preto, e sempre, sem falta, fazia a barba. Aprendeu cedo que uma barba mal feita era um erro imperdoável. Tinha que estar sempre apresentável. Na verdade, ele gostava de parecer feliz e bem, para que suas vítimas o vissem e o invejassem.
A dor continuava a rasgá-lo por dentro. Parecia que o maldito condenado tinha feito algo rachar dentro dele e agora essa rachadura aumentava, inundando-o com sentimentos e sensações que ele passou a vida toda negando sentir.
Pegou a navalha e sentou no piso frio do banheiro.
Ele era um executor, um servo da justiça, mas havia falhado em seu trabalho. Havia deixado de matar o maior assassino que conhecia.
Isso era imperdoável.
Olhou para a lâmina e nela viu mais uma vez os olhos de um assassino.
E então soube que, por uma última vez, deveria fazer o seu trabalho.
Com dois breves movimentos, abriu seus pulsos com a navalha, e enquanto sentia o sangue quente escorrer de seus pulsos, sentia a dor indo embora junto com ele. Agora a justiça estava servida e ele poderia descansar novamente sabendo que realizou seu trabalho de forma impecável como sempre. Agora sua consciência estaria em paz e os fantasmas de todos os assassinos que havia matado e que, há incontáveis noites o atormentavam, se calariam, pois o maior de todos eles agora também havia sido executado.
Mas antes de se entregar ao torpor que ia tomando conta de seu corpo, deixou um pequeno recado escrito em sangue para sua esposa e finalmente, seu último condenado morreu. Um condenado que não foi julgado por tribunal nenhum, mas que foi condenado pela maior força de acusação que existe. Sua própria consciência.
Na manhã seguinte, Carlos foi levado à sala de execução e já sentado na cadeia elétrica, ouvia o juiz proferir a sentença e citar os crimes que o condenaram.
O momento havia chegado e lá, ele encontraria seu fim.
- Alguma coisa a dizer como suas últimas palavras? – perguntou o juiz.
- Sim, tenho. Quero dizer que me não me arrependo do que fiz. Não pedi para ser o que sou. Eu nasci para fazer esse tipo de coisa. E só queria dizer que não matei apenas treze garotas.
- O que você quer dizer com isso? – perguntou o juiz intrigado.
Olhando para o jovem que chegou e se posicionou junto ao painel que ligava a eletricidade da cadeira, sorriu e disse: - Matei treze garotas e um assassino.
E riu, até o momento em que a eletricidade fez seu coração parar de bater, cessando as risadas.
E nessa mesma manhã, em uma casa distante do presídio, uma mulher chorava desesperada por ter encontrado seu marido morto, com os pulsos cortados, no banheiro de sua casa.
E na parede, uma única mensagem escrita a sangue.
“Todo caçador, tem seu dia de caça. E hoje foi o meu..”

2 comentários:

Unknown disse...

Dá-lhe Matheus!!!
Seus textos são ótimos e tenho certeza que você será reconhecido.
Boa sorte e sucesso, da sua crítica n°1 hahahaha.
Bjooooooooooooo*

Joyce

Unknown disse...

Oi Matheus, sou amiga da Carol, que trabalha com vc no SESC, ela me enviou seu blog disse q tá tentando divulgar seus textos..
Sou formada em Letras e trabalho numa editora, adorei seu trabalho, vc tem um domínio muito bom do texto.. espero que dê certo aí a montagem do livro..
Boa sorte
Verônica Merlin